segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Criatividade

“Para viver no mundo é preciso fundá-lo.
Mas para fundá-lo é necessário, primeiro, estabelecer o seu centro.”
Mircea Eliade

A alma é o elo entre todas as coisas, ela deve estar no centro, como a ponte entre a mente e o corpo, o espírito e a matéria. Ela remete à profundidade, à intensidade, e é uma qualidade da existência, um movimento interior, uma forma de percepção, de reflexão. A alma se expressa em imagens, histórias e sonhos.
A imaginação, que é o próprio discurso da alma e sua atividade essencial, inaugura mundos. Só podemos estar no mundo se formamos uma imagem sobre ele. E através desse olhar próprio e imaginativo – ou psicológico – sobre o que está “fora” é que poderemos enxergar a nós mesmos. O homem vive num universo criado por ele e qualquer visão de mundo é uma imagem dele próprio. O mundo depende da maneira como nós o encaramos. E nós dependemos da maneira como encaramos o mundo.

“Qualquer cosmovisão ou visão de mundo é apenas uma imagem que pintamos para deleite de nossa mente. A nossa cosmovisão não é para o mundo mas para nós próprios. Se não formamos uma imagem global do mundo, também não podemos ver-nos a nós próprios, pois somos cópias fiéis deste mundo. Somente quando nos contemplamos no espelho da imagem que temos do mundo é que nos vemos de corpo inteiro. Só aparecemos na imagem que criamos. Só aparecemos em plena luz e nos vemos inteiros e completos em nosso ato criativo.” (Jung, O.C.VIII-2)


Então é em nosso ato criativo que podemos encontrar nossa identidade. A reflexão, este movimento psicológico que transforma fatos em experiências, o instinto cultural por excelência segundo Jung, abre um tempo e um espaço para a imagem e é esse o original ato criativo do homem. Nós criamos e re-criamos o mundo na medida em que temos um olhar imaginativo sobre ele. Se não tivermos nenhuma imagem ou fantasia a respeito do mundo, então ele está morto. E é no processo criativo e no ato de criar, de imaginar, de ver através dos fatos, de perceber as imagens que vivem sob a aparência das coisas, é nesse relacionamento cultivado com a alma que podemos chegar a nos conhecer. Esta é a obra suprema de todo ser humano que faz de si um homem ou uma mulher. É a opus de cada um de nós. Joseph Campbell fala que é preciso que você tenha um quarto, ou um determinado período do dia, um lugar onde você possa “simplesmente vivenciar e dar à luz aquilo que é e aquilo que pode ser. É esse o lugar de uma incubação criativa. A princípio você pode achar que aí nada acontece. Mas, se você tiver um lugar sagrado e usá-lo, alguma coisa acabará por acontecer” (Joseph Campbell, O Poder do Mito).
Jung, para designar a capacidade humana de criar, usou a expressão “instinto criativo”, ressaltando que este fator psíquico tem uma natureza dinâmica semelhante à dos instintos e uma relação íntima e profunda com eles mas que não é idêntico a nenhum deles. O anseio criativo seria como um complexo autônomo, um impulso forte e arbitrário que brota do inconsciente e vive na alma do homem. Criar é uma maneira de conhecer e tomar posse de si mesmo, fundando um mundo cujo centro é um ponto de vista da alma que é particular, individual e único. É como contar a própria estória para o Universo e recriar uma mitologia pessoal.

“Toda obra humana é fruto da fantasia criativa. O poder da imaginação, com sua atividade criativa, liberta o homem da prisão da suas pequenesas e o eleva ao estado lúdico. O homem, como diz Schiller, ‘só é totalmente homem, quando brinca’.” (Jung,O.C. XVI/1)

E o homem quando “brinca” e tem a capacidade de transformar aquilo que ele conseguiu vislumbrar mediante o contato com o reino das imagens em ação e obra, ele se torna o artista.
O artista é aquele que tem a capacidade de manter vivo o relacionamento com a alma ao aprofundar-se na própria experiência. Ele possui uma permeabilidade que lhe permite tocar no fértil reino das imagens, na substância primordial de que todos somos feitos. E quanto mais ele se aproxima de sua própria alma, mais ele se descobre unido à variedade de espíritos e outros seres, pois todos emanam da alma do mundo. O mundo do artista é povoado de espíritos e ele consegue enxergá-los. Os artistas nos inspiram e nos guiam porque parecem mais sensíveis à música do Universo. “O artista tocou as regiões profundas da alma, salutares e libertadoras (...) onde todos os seres vibram em uníssono e onde, portanto, a sensibilidade e a ação do indivíduo abarcam toda a humanidade.” (Jung, O.C. XV). Por isso ele também desempenha as funções de educador e curador, mesmo que não intencionalmente. Ele pode se tornar o agente de alguma necessidade coletiva pois tem o poder de trazer à tona aquilo que uma determinada época mais precisa. Assim, ele é como um xamã de nosso tempo.
E enquanto ele nos conta sobre esses espíritos e nos relembra justamente aquilo por que mais ansiamos, ele próprio também parece estar buscando a si mesmo na sua criação. Aldo Carotenuto diz que um dos aspectos essenciais do espírito criativo é “uma inexaurível necessidade íntima que estimula a realização de uma obra, na ilusão de que a própria criação possa curar certas lesões interiores” (Aldo Carotenuto, Eros e Pathos). Para ele o artista cria continuamente justamente porque não consegue resolver completamente sua problemática mais profunda.
Enquanto cria, o artista também está buscando um diálogo com a história e a memória da humanidade, e está configurando um universo onde ele próprio tenha o seu lugar, organizando um cosmos ao qual ele possa pertencer. Clarice Lispector fala sobre esta necessidade:

“Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada nem a ninguém. Nasci de graça. Se no berço experimentei essa fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus ( ... ) Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma.” (Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo)

A motivação para criar pode vir dessa necessidade de construir ou reconstruir a teia da própria história com imagens que constelam um significado pessoal. “Não tem pessoas que cosem pra fora? Eu coso pra dentro”, Clarice disse. E essa viagem interior se entrelaça com o mundo exterior todo o tempo, pois é justamente para estar no mundo, entendê-lo, viver nele e se relacionar com ele, para amá-lo enfim, é que empreendemos essa expedição.

“Não era à toa que ela entendia os que buscavam caminho. Como buscava arduamente o seu! E como hoje buscava com sofreguidão e aspereza o seu melhor modo de ser, o seu atalho, já que não ousava mais falar em caminho. Agarrava-se ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde ela fosse finalmente ela, isso só em certo momento indeterminado da prece ela sentira. Mas também sabia de uma coisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria a salvo e pensaria: eis o meu porto de chegada. Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no mundo.” (Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres)

Era também para buscar o seu próprio caminho, tocar em si própria e no mundo que Frida Kahlo pintava. Depois de sofrer um acidente aos 18 anos onde foi praticamente esquartejada e que a condenou a conviver com o desmembramento, a desarticulação, a esterilidade, 37 cirurgias ao longo da vida e a amputação de um membro, Frida, através de sua pintura, imprimiu sua história, re-criou seu mundo e lhe deu um sentido e uma identidade:

“Uma vez que meus temas sempre foram minhas sensações, meus estados de espírito e as reações profundas que a vida tem causado dentro de mim, muitas vezes materializei tudo isso em retratos de mim mesma, que eram a coisa mais sincera e real que eu podia fazer para expressar o que sentia a meu respeito e a respeito do que eu tinha diante de mim. Durante dez anos, meu trabalho consistiu em eliminar tudo o que não provinha das motivações líricas internas que me impeliam a pintar.” (Frida Kahlo in Cartas de Frida Kahlo)

A arte nos emociona e a emoção nos move à ação, cria valores, estimula a reflexão mais profunda, ativa a fantasia. A arte, ao vitalizar a alma, nos relembra de nós mesmos. Poderíamos dizer que a arte serve a um propósito psicológico no sentido de alimentar a memória arquetípica e manter vivos e “visíveis” os deuses que nos habitam.

“Quem fala através de imagens primordiais, fala como se tivesse mil vozes (...) eleva o destino pessoal ao destino da humanidade e com isto também solta em nós todas aquelas forças benéficas que desde sempre possibilitaram a humanidade salvar-se de todos os perigos e também sobreviver à mais longa noite.” (Jung, O.C. vol. XV).

Ao sintonizar-se com um espírito criativo a alma é colocada em movimento, anima-se, e o caráter sagrado das coisas comuns se revela. Ao mergulhar na intimidade das próprias “coisas comuns”, escrevendo e pintando sobre elas, essas duas artistas, Clarice Lispector e Frida Kahlo, iluminaram, com a luz de seu espírito criativo, vastas regiões da alma. A busca da própria identidade, o encontro com o homem, a traição, a relação com a morte, com a beleza, com a maternidade, o amor pela natureza, a compaixão pelo mundo, são temas evocados tanto nas telas de Frida quanto nos textos de Clarice. As imagens falam por si e ressoam na alma de quem também tem ouvidos para ouvir a música:



“Pareceu-lhe, então, meditativa, que não havia homem ou mulher que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo mas, já influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu existo.”
(Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres)


“- Eu sempre tive que lutar contra a minha tendência a ser a serva de um homem ( ... ), tanto eu admirava o homem em contraste com a mulher. No homem eu sinto a coragem de se estar vivo. Enquanto eu, mulher, sou um pouco mais requintada e por isso mesmo mais fraca – você é primitivo e direto.”
(Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres)


“Pela primeira vez eu sentia com sofreguidão infernal a vontade de ter tido os filhos que eu nunca tivera: eu queria que se tivesse reproduzido, não em três ou quatro filhos, mas em vinte mil a minha orgânica infernalidade cheia de prazer. Minha sobrevivência futura em filhos é que seria a minha verdadeira atualidade, que é, não apenas eu, mas minha prazerosa espécie a nunca se interromper. Não ter tido filhos me deixava espasmódica como diante de um vício negado.”
(Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.)




“Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece.”
(Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo)




“Ter bicho é uma experiência vital. E a quem não conviveu com um animal falta um certo tipo de intuição do mundo vivo. Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si próprio.
Mas às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que, diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobre de nós.”
(Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo)




“Não, não fui vê-la: detesto a morte. Deus, que nos prometeis em troca de morrer? Pois o céu e o inferno nós já os conhecemos – cada um de nós em segredo quase de sonho já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte.”
(Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo)




“Enfeitar-se é um ritual tão grave. A fazenda não é um mero tecido, é matéria de coisa. É a esse estofo que com meu corpo eu dou corpo. Ah, como pode um simples pano ganhar tanta vida? Meus cabelos, hoje lavados e secados ao sol do terraço, estão da seda mais antiga. Bonita? Nem um pouco, mas mulher. Meu segredo ignorado por todos e até pelo espelho: mulher. Brincos? Hesito. Não. Quero a orelha apenas delicada e simples – alguma coisa modestamente nua. Hesito mais: riqueza ainda maior seria esconder com os cabelos as orelhas. Mas não resisto: descubro-as, esticando os cabelos para trás. E fica de um feio hierático como o de uma rainha egípcia, com o pescoço alongado e as orelhas incongruentes. Rainha egípcia? Não, sou eu, eu toda ornada como as mulheres bíblicas.”
(Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo)


“Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E – e se a realidade é mesmo que nada existiu?! quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo – que sei do resto? o resto não existiu. Quem sabe nada existiu? Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa – a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes – então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.”
(Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H.)




“Senti-me então como se eu fosse um tigre com flecha mortal cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem teria coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E então há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, arranca a flecha fincada.” (Clarice Lispector, Água Viva)




“Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe.”
(Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo)

Um comentário:

Bianca Nunes disse...

Quando tivermos coragem de encararmos a nós mesmos, o mundo se abrirá como uma porta diante de nós! Enquanto estivermos presos a falsas identidades de nós mesmos estaremos vivendo uma farsa. Queremos que nos entendam, mas não nos entendemos... a criatividade bem canalizada faz com que tenhamos um papel mais elevado na sociedade, pois canalizamos o que temos de melhor em nossa alma e entregamos ao mundo!!!

Lindo texto, Fernando! Boas reflexões!